A primeira infância é um período sensível para o desenvolvimento do ser humano. Nessa fase que vai até os seis anos de idade, as instituições família e escola assumem papel primordial na formação do indivíduo. Em relação ao ambiente escolar, a psicologia tem estudado que a atuação de psicólogos ao lado de professores pode prevenir problemáticas do desenvolvimento infantil, potencializando ações de saúde e bem-estar que irão reverberar ao longo da vida do ser humano. Promulgada em dezembro de 2019, a Lei n.° 13.935 dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e assistência social nas escolas de educação básica das redes públicas de ensino. À época de sua promulgação, o texto determinava que os sistemas de ensino disporiam de um ano para cumprir as suas regulamentações. Quase quatro anos depois, a lei, na prática, ainda está engatinhando.
Destacando a importância dos profissionais da psicologia no ensino infantil, uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRGS analisou a contribuição de psicólogas atuantes nessa área para a promoção do desenvolvimento psicossocial na infância. A psicóloga Samanta Wessel, autora da pesquisa, ressalta a carência de estudos acerca do tema e a escassez de profissionais direcionados a esse campo. “Assim como o professor não tem uma formação específica para atuar nessa área da Educação Infantil, nós também não dispomos dessa formação inicial”, ela diz. O pouco incentivo para a formação continuada na Educação Infantil também é um problema.
Antes de iniciar o mestrado, Samanta já atuava como psicóloga há sete anos. Uma das suas linhas de trabalho era a psicologia escolar. Foi por meio da sua atuação em escolas de Educação Infantil que ela percebeu a importância da temática tratada na pesquisa. Sua abordagem sistêmica, que considera o ambiente familiar e escolar na constituição da criança, é um dos pilares dos estudos do grupo de pesquisa do qual faz parte, o Núcleo de Estudos sobre Famílias e Instituições Educacionais e Sociais (NEFIES). A coordenação do grupo fica a cargo de sua orientadora de mestrado, a professora do PPG Psicologia da UFRGS Angela Helena Marin.
Ausência de marco profissional
O estudo foi realizado em duas etapas. A primeira, qualitativa, consistiu em entrevista com 6 psicólogas. Em um campo com poucos profissionais, a metodologia aplicada foi a da estratégia “bola de neve”, em que os participantes indicam outros colegas que conheçam e que possam ter disponibilidade para colaborar. Já na segunda etapa, quantitativa, foi elaborado um questionário com perguntas de múltipla escolha, acessado de forma online por 53 profissionais. Dados da primeira etapa foram utilizados para que se pudesse conhecer mais a fundo a realidade relatada pelas psicólogas. “A gente buscou acessar todas as regiões do país, falando com universidades, grupos de pesquisa, os conselhos regionais de psicologia. Muitos conselhos dispararam a nossa pesquisa para os seus psicólogos registrados”, conta a autora. A pesquisa foi direcionada a profissionais atuantes na Educação Infantil há mais de um ano.
Acessar os participantes foi a maior dificuldade enfrentada por Samanta ao longo do estudo, já que muitos psicólogos atuam na área da educação por meio de contrato ou de concurso de prefeituras. “Então eu sou psicóloga da prefeitura, e lá na prefeitura eu vou para a área da saúde, assistência social ou educação, mas não me vejo como psicóloga da educação, como psicóloga escolar, que atua na Educação Infantil. Eu me vejo como psicóloga da prefeitura”, ela diz sobre o que constatou ao convidar outros profissionais para participar do estudo: “Talvez muitos tenham visto o convite para participar, mas não se sentiram convidados por não existir esse marco profissional”.
“Não está fortalecido enquanto marco profissional ser psicólogo escolar, ser psicólogo que atua na área infantil”
Samanta Wessel
Barreiras a serem enfrentadas
Nem só a falta de reconhecimento profissional representa um entrave ao avanço da atuação de psicólogos na Educação Infantil. As barreiras que impedem a abrangência de toda a comunidade escolar por parte do psicólogo são estruturais. Consistem na falta de tempo por parte do profissional, que às vezes trabalha apenas quatro horas na instituição; no excesso de crianças para a carga horária; e, além disso, na resistência por parte das instituições em permitir a inserção do psicólogo nas relações profissionais, como no estado mental do educador e em sua formação. Em vez disso, a instituição acaba por direcionar o serviço do profissional para o atendimento individualizado das crianças, que, conforme conta Samanta, não é o objetivo. “Nosso foco é fazer um trabalho institucional de rede”, explica.
A sobrecarga do trabalho prestado por esses profissionais, aliada à pouca valorização da área, acaba fazendo com que os poucos que exercem o ofício nesse meio acabem por fazê-lo durante pouco tempo – “até três anos, muitas vezes”, relata Samanta. Dessa forma, o profissional acaba por buscar formação complementar, como a da psicologia clínica ou até mesmo a da psicologia escolar, mas voltada para outras áreas que irão trazer mais benefícios, inclusive financeiros, a longo prazo. Frente à invisibilização do trabalho realizado pelos psicólogos na Educação Infantil, Samanta ainda se impressiona com o depoimento das entrevistadas. “Todas elas mencionaram no final: ‘Nossa, que bom ter esse momento para poder falar sobre o nosso trabalho, porque nunca acontece, nunca eu tinha falado com ninguém a respeito do que eu faço!’.” Afinal, quem muito escuta também precisa ser escutado.
Das pautas levantadas pela pesquisa, a psicóloga acredita que o fortalecimento da discussão em torno da necessidade da implementação da Lei n.° 13.935 seja uma das contribuições da dissertação. “[A presença do psicólogo] É urgente, em todas as etapas da escolarização”, reforça.
Um bebê a caminho
A aquisição do título de mestre é realização de um sonho para Samanta, conquistado num momento delicado e precioso: o da gestação. À espera de um bebê, ela conta que a pesquisa terá de aguardar. Mas há nos planos para o futuro a vontade de compartilhar com outros profissionais o conhecimento adquirido ao longo desse percurso. Especialização na área infantil e na área família-escola também figuram entre as possibilidades que a aguardam.
“Espero agora poder entregar algo para a sociedade, para as escolas onde atuei e para as demais instituições, para muitos profissionais que estão iniciando e que estão nessa área. Isso tem um valor muito grande, essa sensação de poder contribuir a partir de uma inquietação que eu vi que era compartilhada”
Samanta Wessel
Fonte: UFRGS